O Espelho da “Escola” na Produção de Primeiros-Ministros
O Web Summit é apenas o espelho de uma comédia de erros. Quando o Primeiro-Ministro de um país que adora gabar-se do seu turismo, do seu vinho e da sua "relevância global" mal consegue pronunciar duas frases seguidas em inglês, não é só um problema individual. É um diagnóstico cultural.
Hoje, é um dia como qualquer outro, em que o Primeiro-Ministro de Portugal se manifesta com a eloquência de uma torrada sem manteiga. E, como sempre, é impossível não notar o fervor com que se empenha em elevar a Nação ao mais alto nível de desenvolvimento: o tal desenvolvimento digital, das "competências do futuro" e da "capacitação das novas gerações". Um espetáculo sublime de retórica onde tudo soa tão moderno e inovador que até dá vontade de fazer um like em cada frase.
O problema é que, no meio de tanto discurso sobre inovação, progressos e futuras elites, a realidade continua a ser uma sala de aula onde os alunos, em vez de aprenderem a raciocinar e a pensar criticamente, parecem estar a aprender a sobreviver a uma maratona de PowerPoints mal feitos e exercícios de decorado, como se o simples ato de memorizar um conjunto de informações fosse uma competência altamente valorosa. E o Primeiro-Ministro, na sua brilhante exibição no Web Summit, não foi, de todo, uma exceção. Para quem acreditava que a escola estava a preparar os jovens para um mundo globalizado, a verdade é que o inglês do nosso líder soa mais a uma mistura de sotaque lisboeta com a precisão de um GPS danificado.
A Escola das Competências: Uma Fábrica do Nada?
Mas não sejamos cruéis. O nosso Primeiro-Ministro, ao tentar fazer-se entender na língua universal, parece ter cumprido um objetivo: demonstrar que, mesmo com as falhas do sistema educativo, Portugal tem a capacidade de continuar a afirmar-se como um centro de excelência. Claro, excelência num "inglês" que faria Shakespeare virar no túmulo, mas isso não interessa. O que importa, ao que parece, é a aparência. E nesse campo, a mensagem está bem clara: o mundo está a evoluir rapidamente, mas nós, cá em Portugal, continuamos a olhar para a evolução como quem vê um filme de ficção científica, sempre a pensar que um dia as coisas vão ser diferentes. E talvez sejam, mas não hoje. Talvez amanhã, se a nossa ideia de "competência" não continuar a ser sinónimo de um Excel bem preenchido e de uma rápida capacidade de trocar piadas em reuniões on-line.
Enquanto isso, as nossas escolas, com todo o seu alarde de modernidade, continuam a promover a mesma fórmula antiga: ensinar para decorar, decorar para esquecer. E que "competências" são essas que se ensinam? Ah, sim, competências para fazer apresentações de PowerPoint brilhantes (com 47 slides, mas com nenhum conteúdo relevante) ou para saber utilizar o último aplicativo de produtividade que já não serve para nada, porque a produtividade, como todos sabemos, está inversamente relacionada com o número de notificações no telemóvel.
Competências para o Futuro: Um Mantra Vazio?
E, no meio de tudo isso, o que acontece à capacidade de pensar de forma crítica? O que acontece ao questionamento? À dúvida? A isso, os nossos governantes, incluindo o Primeiro-Ministro, têm uma resposta clara: "Competência é saber comunicar!" E nós, povo, continuamos a olhar para a nossa realidade com a mesma perplexidade de quem ouve um político a falar inglês e sente que até o sotaque da sua avó é mais fácil de entender.
Talvez, em vez de dizerem que estamos a formar competências, devêssemos ser mais humildes e admitir que estamos apenas a "ensinar a sobrevivência", porque a verdadeira competência, a que nos torna mais humanos e mais preparados para o futuro, essa parece estar cada vez mais distante, perdida no meio de discursos vazios e soluções superficiais. A escola, esse templo sagrado do saber, continua a ser um palco onde se encena a evolução, mas onde as ideias reais e a capacidade de reflexão são as grandes ausentes.
O Grande Palco da Educação Contemporânea
Mas, no fundo, nada disto é uma surpresa, porque, se o discurso do nosso líder no Web Summit nos ensinou alguma coisa, é que "competência" e "comunicação" estão, afinal, mais relacionados do que pensávamos. E Portugal, com o seu português imperfeito e o seu inglês ainda mais torto, parece estar a caminhar exatamente para onde já devia ter chegado: o futuro, com uma placa à porta a dizer "aberto para melhorias". Ou talvez para mais PowerPoints.
O problema maior nem é só o embaraço alheio. É o que isso revela sobre a cascata de ilusões em que nos enfiámos alegremente, achando que era uma piscina de inovação. Vivemos a época dourada da aparência: desde que pareça moderno, bonito e cheio de palavras como "sustentabilidade", "transformação digital", “integração” e "inteligência emocional", tudo é permitido. E quando se fala de competências, a coisa não é diferente. Parecemos hipnotizados por esta ideia de que os alunos precisam de estar "preparados para os desafios de um mundo em constante mudança".
Sim, o mundo muda. Sempre mudou. Só que, ao contrário do que esta obsessão com a novidade quer fazer parecer, há coisas que nunca mudam: saber pensar. Saber comunicar. Saber distinguir um disparate de uma verdade. Estas são as competências mais básicas, que deviam ser o alicerce de tudo o resto. Mas, em vez disso, tornaram-se um detalhe menor, um adereço que se dá por garantido enquanto se corre atrás de algo mais chamativo, mais instagramável.
Ensinar a Aprender, Mas Esquecer de Ensinar
Afinal, o que é uma escola que não ensina? É um palco, onde os professores são animadores culturais, os alunos são o público distraído e os pais são (re)produtores exigentes que querem resultados rápidos, mas sem dramas. Tudo tem de ser "inclusivo" e "leve", porque ninguém pode sair magoado. É como se estivéssemos todos a participar num grande workshop de autoajuda, onde o importante não é aprender, mas sim sentir que estamos a aprender. O problema é que, como qualquer workshop de autoajuda, saímos de lá exatamente na mesma, só que com um diploma bonito na mão.
O Web Summit é apenas o espelho mais óbvio desta comédia de erros. Quando o Primeiro-Ministro de um país que adora gabar-se do seu turismo, do seu vinho e da sua "relevância global" mal consegue pronunciar duas frases seguidas em inglês, não é só um problema individual. É um diagnóstico cultural. É o resultado de décadas a fingir que ensinar coisas concretas, práticas e difíceis era uma perda de tempo. É o produto final de um sistema onde as "competências" se tornaram um mantra vazio, repetido ad nauseam por gente que nunca teve de resolver uma equação de segundo grau ou escrever um texto sem usar emojis.
Reforma Educativa ou Reforma de Aparências?
E aqui está a ironia suprema: ao fugir desesperadamente do tradicional, acabámos por criar uma escola que não prepara ninguém para o futuro. Porque o futuro, ao contrário do que nos querem fazer acreditar, não é só computadores, startups e unicórnios. O futuro também é precisar de negociar um contrato, explicar uma ideia, perceber uma notícia ou defender um argumento. E, no estado em que as coisas estão, não sei quem me preocupa mais: se os alunos que saem da escola sem saber fazer nada disso, se os líderes que já lá estão e, claramente, também não sabem.
Portanto, fica a sugestão para a próxima grande reforma educativa: menos "competências para o futuro" e mais "competências básicas para o presente". Menos palavreado e mais substância. E, já agora, um intensivo curso de inglês para toda a classe política. Se o Web Summit continuar a ser um palco para estas tristes figuras, arriscamo-nos a que, no futuro, nem os turistas nos levem a sério. E aí, meus amigos, nem o sol, praias e o nosso vinho nos vão salvar.
Paulo Brites
2024.11.16
(1) Imagem - www.dnoticias.pt
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