O excesso de ideologia em Portugal tem o jeito de um amigo inconveniente
O excesso de ideologia em Portugal tem o jeito de um amigo inconveniente. Aparece sempre sem ser convidado e pior, não quer saber se estamos a jantar, a discutir futebol ou simplesmente a tentar viver.
É como se a ideologia – todas as ideologias – se tivesse instalado em tudo, do café à famÃlia, da escola à sala de estar. Mesmo que muitos de nós já tenhamos tentado fazer aquela coisa nobre e quase extinta de pensar por conta própria, a ideologia lá está, insistente e irredutÃvel, como um eco que nunca se cala.
O português sempre teve um jeito especial para o contraditório, para um sarcasmo simpático e uma observação arguta. Mas agora, parece que estamos todos a perder isso. Cada vez mais virados para a crÃtica cheia de certeza e menos para a ironia cheia de dúvidas. A ironia está morta; viva a opinião!
Cada conversa transforma-se numa arena em que cada um defende a sua trincheira ideológica, seja ela de esquerda, direita, centro, ou qualquer uma das mil variações que nascem como cogumelos em tempo húmido.
E aqui está o grande problema: o excesso de ideologia não traz ideias – empobrece-as. O radicalismo de bolso com que todos andam armados transforma questões complexas em slogans, como se qualquer questão polÃtica pudesse caber num soundbite.
Ora, se há coisa que o português sempre teve, além do talento para o fado, é a habilidade de desconfiar de certezas absolutas. Mas estamos a assistir a uma época em que esta capacidade está a ser engolida por rótulos e por uma sede de pertencer a algo – a qualquer coisa. Ser de um lado ou de outro já não é suficiente; é preciso ser de um lado contra o outro.
E enquanto isso, o quotidiano vai ficando mais insuportável. O café que era para ser um espaço de conversa transformou-se numa espécie de debate eterno, em que a nossa posição sobre cada tema precisa estar alinhada com alguma ortodoxia qualquer. E tudo se afunda em slogans, frases feitas e opiniões “sacadas” de programas de televisão ou de redes sociais.
A simplicidade (ou será preguiça?) de escolher uma ideologia como lente para ver o mundo significa, inevitavelmente, que deixamos de ver o que está à frente do nariz. Ou, pior ainda, ver o que está à frente do nariz e fingir que vemos o que queremos ver.
Portugal vive hoje num turbilhão de ideologias, como se cada esquina tivesse um novo dogma à espreita. Mas, entre tanta opinião e certeza pronta a ser lançada, o que mais parece faltar é o pensamento. Pensar, esse exercÃcio que sempre fez parte da alma portuguesa, é agora coisa rara. Perguntar o porquê das coisas, aprofundar a conversa, ouvir e refletir com curiosidade – tudo isso parece estar em vias de extinção. No seu lugar, multiplicam-se ideias superficiais, ditas com um fervor que só se encontra nos convertidos recentes.
Talvez fosse hora de resgatar uma velha tradição portuguesa: o direito à contradição e ao paradoxo. E se experimentássemos ser “de esquerda” e “de direita” na mesma conversa, misturar ironia com sinceridade e preferir a pergunta à resposta? E, acima de tudo, aceitar que a vida, essa entidade deliciosamente teimosa e imprevisÃvel, resiste a todas as ideologias e continuará a surpreender-nos, independentemente de quantos rótulos nos esforcemos por lhe aplicar.
A solução? Talvez fosse necessária uma revisão drástica do nosso ensino, uma verdadeira revolução curricular que não tema o rigor e não tema o aprofundamento. Que não tema dizer aos alunos que pensar é um exercÃcio que exige esforço, que exige dedicação.
É urgente acabar com o facilitismo, que dá boas notas mas não dá entendimento, que cria alunos aprovados mas desprovidos de curiosidade. Que forma cidadãos treinados para acreditar em qualquer coisa que lhes sirvam desde que venha já pronta, como uma refeição embalada.
E sim, é preciso recuperar o orgulho nas nossas tradições culturais. Na literatura, na música, na história que são nossas e de mais ninguém. Sem uma identidade forte, continuaremos a ser um paÃs que recebe ideias de fora sem saber o que fazer com elas.
Sem identidade, qualquer ideologia é uma moda, qualquer moda é uma verdade e o pensamento é uma peça decorativa que se põe de lado.
Precisamos urgentemente de voltar a ter orgulho na nossa própria cultura, não como um passado que carregamos, mas como uma base que nos torna únicos, como um terreno seguro onde as novas ideias podem crescer com critério e coerência. Orgulho no fado, no azulejo, no jeito peculiar de ver o mundo, que nem sempre precisa de respostas claras. Portugal só será verdadeiramente moderno se souber preservar o que lhe é autêntico, sem ter de renunciar à sua própria essência.
O que falta hoje é discernimento, é aquela capacidade de ver o mundo com olhos abertos, de perceber que nem tudo o que é novo é bom e que nem toda a tradição é um peso. Entre o peso e a leveza, precisamos de encontrar o equilÃbrio que nos permita avançar sem nos perdermos.
Em resumo, é altura de aprender a distinguir o que é passageiro do que é fundamental e a ter a coragem de pensar por nós mesmos, de forma complexa, contraditória, mas sempre portuguesa.
Paulo Brites
2024.11.02

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