Carta aberta ao Senhor Primeiro-Ministro Luís Montenegro
Meu caro Luís,
Permita-me a informalidade, mas depois de ver o que se passou (e passa) nos jardins de São Bento no dia de hoje, parece-me evidente que a República entrou na fase da confiança cega – uma espécie de jantar de curso em que todos fingem que sabem dançar e acabam de copo de plástico na mão a discutir se Marcelo Rebelo de Sousa dava um bom DJ.
Soube – com algum espanto e uma boa dose de Alka-Seltzer – que decidiu “juntar” as comemorações do 25 de Abril com o 1º de Maio. Como quem junta os restos do almoço com o jantar e chama a isso “tábua de enchidos patriótica”. Presumo que a ideia tenha sido aproximar os portugueses da sua História. Mas aproximar como? Se a própria Constituição define Portugal como um Estado Laico? Que têm as cerimónias fúnebres do Papa a ver com isto?
O 25 de Abril foi a data em que um povo farto de botas decidiu calçar sandálias. E o 1º de Maio é o dia sagrado – não, não é feriado para irem todos ao Colombo – em que se lembra que o trabalho é uma coisa que se faz com dignidade, e não com recibos verdes, estágios eternos ou contratos que duram menos que um reality show.
Pergunto, então, com a ingenuidade de quem ainda acredita no poder do sarcasmo: quem foi o génio – o Aristóteles da Assessoria – que achou boa ideia transformar os jardins do Parlamento num parque temático da amnésia coletiva? Um evento “cultural”, dizem. Cultura de quê? Do esquecimento?
E nem vou entrar muito pela estética da coisa, porque cada vez que um político português tenta ser inovador, um cravo murcha (ainda há exceções felizmente, mas poucas). Mas convenhamos: há algo de especialmente ofensivo em ver um governo e alguns partidos da oposição que não sabem o preço de um litro de leite ou de uma dúzia de ovos fazerem discursos sobre “a força dos trabalhadores”, enquanto oferecem música ligeira e discursos ainda mais ligeiros.
A Democracia, Sr. Primeiro-Ministro, não é um festival. E os trabalhadores não são figurantes num anúncio da NOS. Não é com coreografias institucionais nem com croquetes de catering que se honra quem lutou, foi preso, perdeu o emprego e a vida para que o senhor hoje possa fazer discursos onde diz “liberdade” tantas vezes que já nem se sabe o que quer dizer.
Se queria mesmo honrar as duas datas, bastava um gesto simples: ouvir! Ouvir quem trabalha! Quem não dorme! Quem carrega o país às costas! Quem é sufocado por impostos! Quem necessita de cuidados urgentes de saúde e não os tem! Quem quer justiça e a ela não consegue aceder porque não tem euros! Quem quer habitação e só em sonhos a consegue! Quem quer educar os seus filhos nas escolas e ceio familiar, mas as ideologias politicas não deixam! Quem quer segurança e não a tem! Quem quer um país rico e somente sabe empobrecer o povo! Mas claro – isso não dá likes nem fotos boas para o Instagram da Presidência. Tal como os “fofinhos dos cravos” que de “floricultura” democrática e liberdade pouco dizem para um bom futuro. Somente falam do passado já passado!
NOTA (porque não me aguento sem deixar uma nota): Em política, como na cozinha, há pratos que não se misturam. O 25 de Abril e o 1º de Maio merecem digestões separadas. A liberdade e o trabalho não são decorações de jardim. São conquistas. E conquistas não se celebram com luzes LED nem discursos reciclados. Celebram-se com memória. E com vergonha na cara, quando a memória falha.
… e que nunca se confunda um cravo com uma couve-flor!
Paulo Brites
2025.05.01
Politica - Efemérides
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