O Novo Ministério ou Mistério da Cultura (Que já não é Bem Isso)
Por alguém que ainda acredita, como um parvo, que a cultura serve para alguma coisa
A cultura é muito importante. Tão importante que, em Portugal, está guardada a sete chaves, como as jóias da coroa. Ninguém lhe toca, não vá ela estragar-se. E quando tocam, é para a emoldurar com PowerPoints e discursos de tédio olímpico. Porque cultura, senhores, é coisa séria. Não é para andar aí à solta a sujar as mãos das pessoas.
Ao longo dos últimos 50 anos — ou seja, desde que deixámos de ter medo da PIDE e passámos a ter medo das Finanças — a cultura portuguesa tem sido tratada com o carinho reservado ao tapete da casa da avó: ninguém o deita fora, mas também ninguém o limpa. É nosso, é bonito, mas está ali num canto, por detrás da sapateira. É bom que ninguém repare muito nele, não vá dar ideias.
Os nossos políticos, coitados, falam da cultura como quem fala de uma tia velha que já não sai de casa: com respeito, com um certo embaraço, e sempre a olhar para o relógio. Quando há eleições, aparecem em feiras do livro como quem visita doentes no hospital: não sabem bem o que dizer, sorriem muito, e desaparecem mal acaba a fotografia. Porque a cultura, meus amigos, não dá votos. E se der, são poucos e muito mal passados.
A Cultura é Importante (Dizem Eles)
Portugal, essa nação tão velha e tão novinha em ideias, tem uma identidade cultural rica, complexa, cheia de contradições deliciosas: choramos com fado mas dançamos com pimbalhada; temos Camões e Quim Barreiros a ocupar o mesmo altar emocional. E isso não é um problema — é precisamente o que nos torna únicos. A tragédia é quando começamos a ter vergonha disso. Quando achamos que cultura “a sério” vem de fora. Que o que é nosso é amador, pobrezinho, subsidiado e sem glamour.
Mas um país sem cultura é como um pastel de nata sem creme: parece bem à vista, mas morde-se e é só desilusão. Um povo que não se reconhece nos seus livros, na sua música, nas suas histórias e na sua arte, não se reconhece em lado nenhum. Vive à deriva, como um SUV de leasing sem GPS.
Ora, sem desenvolvimento cultural não há desenvolvimento nenhum. Porque a cultura é a única coisa que nos obriga a pensar antes de agir, a duvidar antes de obedecer, a imaginar antes de desistir. É a cultura que nos tira do atoleiro onde a política nos atira. É o nosso único luxo verdadeiro: poder dizer quem somos, mesmo quando ninguém está a ouvir.
Sem Cultura Não Há Futuro. Só Entretenimento
E se é verdade que os governos passam, as crises passam, e até os estádios se enchem (para ver “cultura desportiva”, claro), a cultura fica. Fica porque somos nós. Fica porque, no fundo, mesmo os ministros da Cultura sabem — quando se sentam sozinhos à noite, depois de mais uma inauguração com canapés — que, sem cultura, são apenas gestores de ruínas.
Portugal, esse país perito em transformar tragédias em anedotas mal contadas, conseguiu mais uma proeza digna de registo no grande livro das ideias idiotas: juntar a Cultura com o Desporto e a Juventude. Porque, claro, são praticamente a mesma coisa. Nada diz “Valorizamos o pensamento crítico, o património imaterial e a criação artística” como atirar tudo para a mesma mochila onde estão os patrocínios da Liga Betclic, os TikToks de ministros com boné e os cartazes de “Juventude em Movimento 2030”.
É mais uma maneira subtil de nos dizerem: “A Cultura não é assim tão importante. É um extra. Um acessório. Um enfeite para quando as coisas correm bem”. Mas como nunca correm, lá está a Cultura, na fila do desemprego institucional, a tentar convencer alguém de que ainda faz falta. O problema é que, em Portugal, ser Ministério é uma coisa que se leva a sério só quando tem betão, obras públicas ou multinacionais a bater à porta. A Cultura? Nem sequer faz barulho.
Não se trata de uma decisão administrativa. É uma declaração de princípios — ou melhor, de falta deles. Um país que junta a Cultura ao Desporto como se fossem dois módulos opcionais de uma licenciatura em "Entretenimento Geral" está a confessar, de forma quase ternurenta, que não percebe nem uma coisa nem outra. É como pôr um violoncelo e uma bicicleta na mesma vitrina e chamar-lhe “mobiliário urbano”.
50 Anos de Democracia, 50 Anos de Cultura às Migalhas
Sejamos honestos: o Ministério da Cultura nunca teve o poder real que devia ter. Sempre foi uma espécie de ministério-bibelot, simpático de exibir mas embaraçoso de usar. Mas agora, com esta fusão forçada, tornou-se numa espécie de aplicação de telemóvel que ninguém abre. Está lá, ocupa espaço, mas ninguém sabe bem para que serve. Talvez para tirar selfies com artistas antes de os mandar emigrar.
O que a Cultura precisava — e nunca teve — era de um verdadeiro orçamento, autonomia estratégica e gente com coragem para a defender. Mas isso seria admitir que a cultura tem um papel estrutural. Que forma cidadãos. Que incomoda o poder. Que pensa o país para além da legislatura. E isso, meus caros, é um luxo perigoso.
Porque dar poder à cultura é dar poder à memória, à crítica, à diversidade, ao questionamento — tudo coisas que o poder político, em geral, prefere guardar num cofre fechado, com um bilhete a dizer: “Para depois”. Mas esse “depois” nunca chega. Porque há sempre estádios para inaugurar, influencers para patrocinar e campanhas para decorar com slogans tão vazios como os auditórios que construíram no interior país e depois esqueceram.
A verdade é simples e triste: não é que não tenhamos políticas culturais. É que não temos políticas com cultura. E isso, para um país como o nosso — com uma herança cultural que mete inveja a países que se dão ao luxo de a respeitar — é uma vergonha que nem o fado consegue cantar.
Portanto, sim: continuem a cortar orçamentos, a diminuir o Ministério da Cultura, a fechar livrarias, a ignorar os criadores e a nomear amigos para cargos vagamente culturais. A cultura portuguesa já sobreviveu a coisas piores. E continuará a resistir, com o humor triste e sarcástico que nos define, mesmo que seja apenas no fundo de uma gaveta com cheiro a mofo e esperança.
Paulo Brites (alguém que ainda acredita, como um parvo, que a cultura serve para alguma coisa)
2025.06.06
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